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terça-feira, 22 de março de 2016

Atrás da máscara

Carnaval de Salvador, 2016.
- É o Psirico? - pergunta a foliã carioca.
- É o Chiclete? - quer saber
o amigo paulista.
- NÃO, É O BAIANA SYSTEM, MEU PAI - grita, empolgado, o ambulante que lhes atendia, saindo correndo em direção àquela massa, deixando seu isopor de Schin ao deus-dará.
Há muitos anos não se via tamanha sintonia entre banda e multidão. Não no Carnaval de Salvador. Não com uma banda que não toca nas rádios, mas que tem absolutamente todas as suas músicas cantadas em uníssono por essa mesma multidão que arrastou em fevereiro.
Este mês, o Baiana System está lançando Duas Cidades, o segundo disco de uma carreira de seis anos, inúmeros shows pelos quatro cantos do mundo, incluindo Dinamarca, Rússia, França, Estados Unidos, carnavais e muita história para contar.
E, para contá-la, voltemos uma parte dessa história no tempo. Jamaica, 1970.
Com a tecnologia, os DJs jamaicanos, além de tocar os sucessos do rock and roll e rhythm'n'blues que chegavam à ilha, passaram a poder modificá-los, tirando a voz e mandando as suas próprias mensagens em cima daquela base musical. Eles improvisaram e animaram as festas com a mesma música por horas, tudo isso com apenas caixas de som e uma equalização cheia de graves. Era o sound system.
"O lance do grave é que, além de ouvir, a pessoa também o sente", destaca Russo Passapusso, cantor e compositor do Baiana System. Nascido em Senhor do Bonfim, Roosevelt (o Russo vem da variação que seu nome foi ganhando) cresceu ouvindo forró e também os  violeiros que tocavam Fagner, os tecladistas que tocavam arrocha e o jegue que tocava a clássica lambada "Ui piti piti": "Penduravam as caixas de som nele e os foliões iam ao redor. Era o Jegue Elétrico", lembra Russo.
Aos 14, foi morar em Salvador e, perdido na capital, fez do total desconhecimento o seu aliado para descobrir a cidade: "Eu ia pra tudo: Russo, vamos pro pagode? Vamos. Vamos pro rock? Vamos. Vamos pro reggae? Vamos". Nessa fartura de histórias e ritmos, conheceu músicos e DJs, como Dudu Caribe e Raiz, o grafiteiro MFR, o francês D'France, e, trocando experiências e se aprofundando em vinis jamaicanos, descobriram a cultura sound system. Empolgados com essa ferramenta, juntos, compraram um equipamento e o batizaram de Ministério Público, entrando com ele nas periferias de Salvador. "Mas a gente não ia lá para que a cidade nos conhecesse. A gente ia pra que a gente conhecesse a cidade". 
Na mesma época, o guitarrista Roberto Barreto conhecia o mundo excursionando com sua banda, Lampirônicos, quando um fato começou a chamar a sua atenção: "Tinha um momento do show em que eu usava a guitarra baiana e via que as pessoas ficavam fascinadas, querendo saber que instrumento era aquele".
Com o fim das atividades da banda, ele começou a produzir programas para a Rádio Educadora, como o Rádio África e No Balanço do Reggae. Em sua pesquisa, descobriu a música do Congo, Angola, Jamaica.  Com o baixista Seco, passou a compor, colocando aquele pequeno grande instrumento inventado por Armando Macedo nas bases rítmicas que ia encontrando. Depois, ia gravando as primeiras ideias e mandando para o irmão, o designer Filipe Cartaxo, trabalhar a partir delas.
Desde essas composições iniciais, aliás, nenhuma imagem na banda é gratuita. Todos os vídeos, cenários, cartazes e Instagram têm um propósito. Para a foto que ilustra a abertura desta reportagem, por exemplo, eles fizeram questão de que fosse com a máscara, elemento distribuído nos shows e responsável pela forte identidade criada entre o Baiana System e seu público. Nesse ponto, fica a impressão de que o rigor no controle da imagem atrapalha a naturalidade com que a banda seria vista por outros olhos.
Buscando referências em Salvador, Barreto chegou ao Ministério Público e a Russo Passapusso. Foi o encontro do subgrave do sound system com o superagudo da guitarra baiana. O primeiro disco homônimo foi lançado em 2010. Guitarra, baixo, voz, bateria eletrônica e imagem. A primeira informação sobre a banda era de que se tratava de uma espécie de releitura do axé. "Não deixa de ser. É isso, é mais que isso e é também o que as pessoas acharem que é", diz Barreto.
A simbiose com o público é forte. As pessoas fazem parte da criação, usam a mesma máscara e inspiram os músicos no palco, contagiando quem estiver naquele perímetro sonoro e visual. Cada apresentação é uma experiência única. 
"Desde que vi pela primeira vez, saquei um borogodó forte ali. Os shows evocam (boas) sensações primitivas na galera, e os momentos de catarse coletiva são diversos. Ir a um show deles é estar disposto à entrega", diz o ilustrador Zeca Forehead. Na página feita pelos seguidores no Facebook, uma das perguntas mais frequentes é: "Alguém sabe quando vai ter show?"
Do jegue ao navio pirata
Há quem diga que o Baiana System está fora do dito esquema mercadológico, porém esqueceram de avisar isso ao público, que lota todos os shows. Alguns fãs mais antigos até acham que a banda está mais comercial. "Nada contra quererem alcançar diferentes perfis de público, mas isso não me agrada tanto", critica a fotógrafa Sandra Travassos. Apesar disso, no terceiro ano do trio elétrico Navio Pirata, uma multidão foi às ruas neste Carnaval. 
Fato é que o BS criou o seu próprio mercado, alimentando os seus seguidores com músicas, vídeos, fotos ou máscaras, constituindo, no decorrer desses anos, uma base sólida de fãs que aconteceu por meio do natural e eficaz boca a boca.
Para a estudante Clara Sena, não foi amor à primeira vista: "Uma amiga me mostrou e eu não tinha gostado, até que ela me convenceu a ir vê-los ao vivo e desde então eu fiquei encantada. Vou a todos os shows que posso, e em um deles eu ainda conheci meu namorado". Passapusso adverte: "Quem conhece ao vivo e depois ouve o disco, às vezes, se decepciona, pois estamos sempre mudando, que é o princípio do sound system". Roberto completa: "Há também o inverso. O cara conhece o disco e, quando vai ao show, fica chocado, está tudo diferente".
Essa liberdade permitiu que a banda, no início da carreira, em 2010, fizesse uma turnê pela China e pelo Japão com apenas seis músicas no repertório. "A primeira vez que vi um show foi em 2011", lembra o DJ Edbrass Brasil, "de lá para cá, cresceram muito como banda ao vivo. O resultado em disco ainda não pintou, mas tem tudo para acontecer, com as novas parcerias".
Depois de "quando vai ter show?", a outra pergunta que aparece nas redes é: "Alguém sabe quando sai o disco novo?".  A resposta: o upload começa a ser feito dia 22, terça-feira. Esta semana já poderá ser escutado, por enquanto apenas nas plataformas digitais da banda - Spotify, iTunes e Soundcloud. Eles tocam em maio, em São Paulo. Em Salvador, ainda não têm data nem comentam sobre a agenda.
Intitulado Duas Cidades, a ideia era gravar apenas em São Paulo. Por isso, Barreto, Seco, Passapusso, Cartaxo e o produtor Daniel Ganjaman (Otto, Crioulo, Nação Zumbi) foram para um sítio na serra paulista, onde ficaram por um mês. Ao fim do processo, sentiram que faltava algo no disco, principalmente para uma banda chamada Baiana System: faltava a Bahia.
Voltaram a Salvador e convidaram uma série de músicos, como o percussionista Márcio Victor, o pianista Marcelo Galter, o guitarrista Junix, o pernambucano Siba (voltando a tocar rabeca) e As Ganhadeiras de Itapuã. Sobre essa última parceria, o regente Amadeu Alves comenta: "Criou-se uma ponte entre a voz de raiz das lavadeiras do Abaeté com uma banda ligada a elementos tecnológicos. Eles buscam o futuro, mas também as raízes. E é isso que dá potência a um trabalho. Raiz é legado".
Duas Cidades, ouvido pela Muito, traz 12 faixas que trafegam na linha tênue entre o pop e o conceitual, com melodias facilmente absorvidas na primeira audição, mas sem soar apelativo. A essência continua: reggae, dub, rock, pagode, o peso do grave com o agudo, a percussão com a batida eletrônica e as intervenções vocálicas de Russo, fazendo da voz quase um tambor, tudo está ali. Nesse(s) ritmo(s), o Navio Pirata 2017 pode arrastar ainda mais gente, mostrando que atrás do Baiana System só não vai quem já morreu.
>> A ênfase do espírito original
Desde sempre - seja nos anos 80, nos anos 90 ou 2000 -  o underground baiano repeliu tudo o que tivesse características da chamada axé music. Bandas de rock pipocavam pela cidade, mas, como diz  o produtor Nestor Madrid, ele ficava assustado com o fato de não enxergar "coqueiros" nessas bandas.
Pelo que se vê a partir do Baiana System, essa realidade mudou. Para o músico Jorge Dubman, baterista do I.F.Á. Afrobeat, outro forte nome desse novo cenário,  "a queda financeira e produtiva do axé fez todos os olhares se voltarem para essa cena. Ela está cada vez mais forte, com várias influências, sotaques e experimentações". Ele cita Kalu, O Quadro (Ilhéus), Daganja, Rafa Dias, Pali OJC, Complexo Ragga (Vitória da Conquista), Rumpilezz, Dão...
O jornalista e DJ Luciano Matos vai além. Para ele, o fato de a indústria do axé entrar em decadência fez com que tudo aquilo que ela representava deixasse de ser algo nefasto. "A música afro, a tônica na percussão, falar do Carnaval, usar guitarra baiana, pensar em ser grande... Isso era o diabo para esse universo mais 'alternativo' e hoje não é mais", avalia.
Para ele, novos artistas já nasceram sem esse preconceito, da mesma forma que veteranos passaram a não se preocupar com isso, mesmo no rock. Luciano acrescenta à lista de Dubman os nomes de Mauro Telefunksoul,  Bahia Bass, Som Peba, Attooxxa, Lord Breu, Funfun Dúdú, Trad, Tabuleiro Musiquim, Suinga e Giovani Cidreira. A lista é grande e, pelo visto, não vai parar de crescer.
>> Duas cidades
O upload começa dia 22/3. Esta semana, o disco já poderá ser escutado nas plataformas digitais da banda - Spotify, iTunes e Soundcloud




Fonte> http://www.atarde.uol.com.br/muito/noticias/1756277-atras-da-mascara

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